O monstro embargado: metamorfose kafkiana em um conto de José Saramago (original) (raw)

O monstro embargado: metamorfose kafkiana em um conto de José Saramago (Marcelo Pacheco Soares)

Na literatura e nas demais artes, a figura do monstro refere-se, muito comumente, a uma representação do outro, da manifestação de uma alteridade em certa comunidade. Nesse sentido, a novela de Franz Kafka A metamorfose, trazida a público em 1915, fornece, no processo da transformação monstruosa sofrida por seu protagonista, Gregor Samsa, potencial denúncia de uma alienação da identidade a que está submetido o ser humano nas sociedades hodiernas. E, dada a pertinência desse tema na conjuntura do século XX, a poética kafkiana exercerá forte influência sobre a literatura novecentista do Ocidente. O presente artigo investiga algumas dessas manifestações da metamorfose kafkiana na literatura portuguesa, notadamente no conto “Embargo”, que José Saramago publica nos anos de 1970, narrativa que, por sua vez, ao estabelecer com a novela de Kafka evidente diálogo intertextual, expõe não somente a alienação, mas também a reificação do homem urbano contemporâneo pela sociedade de consumo.

O fantástico reformulado em Coisas e Embargo, de José Saramago

Resumo: Os contos " Coisas " e " Embargo " , presentes em Objecto quase (1978), caracterizam-se por uma inversão de valores entre seres humanos e objetos. Em ambos, os objetos extrapolam seu sentido convencional, o que nos permite aden-trar a esfera do insólito ficcional. Parece-nos significativo que nessas narrativas, ao relacionar-se com a realidade, a estruturação dos elementos representativos do fantástico reconduz a realidade a um mundo alternativo, cuja criação depen-de dos elementos ficcionais e do leitor. A partir da releitura do fantástico preten-demos investigar seus modos de enredamento e como essa forma é potencial-mente significativa para a reflexão crítica sobre o nosso mundo representado. Palavras-chave: Fantástico. Embargo. Coisas. Sobre a abordagem teórica: conSideraçõeS Sobre o fantáStico ■ A partir de reflexões proporcionadas por trabalhos anteriores e exten-sos associados à produção estética de José Saramago, sobretudo no que diz respeito à presença de gêneros literários 1 que se estabelecem 1 Embora o conceito de gênero ocupe um lugar relevante nas discussões literárias, não é nosso objetivo abordar esse assunto com profundidade neste trabalho. Entretanto, consideramos pertinente esclarecer que o que tratamos como gênero são a literatura fantástica e o maravilhoso. A designação de gênero para o realismo mágico nos parece abusiva, uma vez que entre os teóricos não parece haver consenso sobre isso. Reis e Lopes (2007, p. 187), ao definirem o gênero narrativo, situam-no " no contexto das relações entre modos e gêneros: de acordo com uma concepção que vem de Goethe (que falava em formas naturais e espécies literárias), a moderna teoria literária tem postulado a distinção entre categorias abstratas, universais literários desprovidos de vínculos históricos rígidos (os modos: lírica, narrativa e drama) e categorias historicamente situadas e apreendidas por via empí-rica (os gêneros: romance, conto, tragédia, canção etc.) [...] ". Massaud Moisés (2004, p. 250), por sua vez, em seu Dicionário de termos literários, após uma longa explanação sobre a historicidade do conceito de gênero, conclui " pela existência de apenas dois gêneros, e não três: a POESIA (correspondente à lírica e à épica da tripartição convencional) e a PROSA – entendidas não na sua aparência formal, mas no modo como divisam a realidade, segundo a qual a poesia seria a expressão do 'eu' e a prosa, do 'não-eu'. A poesia, por sua vez, apresenta duas espécies – o lírico e o épico – e uma série de formas – o soneto, a ode, a balada, a canção etc. A prosa não se fragmenta em espécies, mas apresenta três formas: o conto, a novela e o romance ". Assim, o romance, por exemplo, é um gênero, para Reis e Lopes, e uma forma, para Moisés. Como nenhum dos autores problematizou a existência do realismo mágico, continuaremos a tratá-lo como uma categoria literária.

A Narrativa Caotizante De Saramago

Revista de Letras Norte@mentos

Nosso trabalho teve como proposta um estudo da obra saramaguiana, a partir das noções de caos e cosmogonia, intercalando-os com o conceito de uma narrativa caotizante. Como método introdutório, partimos da concepção da criação na/da escrita nos romances Claraboia (2011), Ensaio sobre a cegueira (1995) e Ensaio sobre a lucidez (2004). Em seguida, nos utilizamos do binômio cosmogonia/escatologia para enfatizar uma análise comparativa entre as obras As intermitências da morte (2005) e Caim (2009). Para esta pesquisa, destacamos a contribuição dos estudos de Mircea Eliade, em Mito e Realidade (2011) e em O Sagrado e o Profano (2010).

Embargo às coisas: alegoria, alienação e marxismo em José Saramago

2022

O presente artigo pretende, por meio de uma percepção materialista histórico-dialética, analisar os contos Embargo e Coisas, presentes na coletânea Objecto Quase (1994), de José Saramago. Para tanto, utilizar-se-á os conceitos de Alegoria e Insólito, à luz das formulações de Hansen (2006) e Pierini (2017), respectivamente, atrelados à teorização da Alienação, compreendida aqui a partir do pensamento de Karl Marx (2015), bem como de seus críticos, tais quais Williams (2007), Petrović (2012) e Konder (2015). Com base nos referidos teóricos do literário e das ciências sociais, objetiva-se discutir em que medida os contos saramaguianos, utilizando-se de recursos alegóricos e insólitos, apreendem, em sua composição ficcional, o conceito de Alienação marxista, a fim de se discutir os contornos da sociedade capitalista contemporânea.

Figuração da personagem: a ficção meta-historiográfica de José Saramago

J. Santa-Bárbara, Vontades. Uma leitura de Memorial do Convento. 2ª ed. , 2013

1. A 19 de agosto de 2001, foi inaugurada na Biblioteca Nacional, em Lisboa, uma exposição do artista plástico José Santa-Bárbara, intitulada Vontades. Uma Leitura de Memorial do Convento. Estava-se ainda relativamente perto da atribuição do Prémio Nobel da literatura a José Saramago e o autor de Memorial do Convento (1982), em grande parte graças a este romance, era já uma figura com projeção e com notoriedade internacionais. O motivo e os temas da exposição eram evidentes: o pintor fizera uma leitura de Memorial do Convento e as obras exibidas traduziam, num outro medium, o resultado dessa leitura. Recordo brevemente o que foi a mencionada exposição (que à época conheceu assinalável êxito de público), tal como testemunha o catálogo (Santa-Bárbara, 2001 1 ): trata-se de 35 telas, compreendendo 11 estudos, com recurso a diferentes técnicas e predominância do óleo e da têmpera vinílica sobre papel colado; todos os estudos usam o pastel, com uma exceção (uma aguarela). A feição geral das obras revela-nos um conjunto de figuras com rostos alongados, individualmente e em grupos, pintados em cores sombrias e envoltos por uma atmosfera pesada e dramática.

Do animal ao inanimal: figurações canídeas na obra de J. Saramago

2017

Os chineses da comarca de Sichuan recordam a mais espantosa das inundações havidas e por haver: ocorreu na antiguidade dos tempos e afundou o arroz, com alma e tudo. Só se salvou um cão. Quando por fim baixou a cheia, e muito lentamente se foi acalmando a fúria das águas, é que o cão pôde chegar à costa, nadando a muito custo. O cão trouxe uma semente de arroz colada à cauda. Nessa semente estava a alma.

José Saramago: a Literatura e o Mal

Tinta-da-China, 2022

https://tintadachina.pt/produto/jose-saramago-a-literatura-e-o-mal/. Este ensaio pretende contribuir para a compreensão da problemática do mal quer em José Saramago, quer, a partir da sua escrita e do seu pensamento, na ação individual e na prática social e política (na vida ética): o mal substantivado na História em instituições como a Inquisição, a monarquia e outras formas de governo, e em poderes económicos como o do latifúndio alentejano anterior à Revolução de Abril e o dos mercados neoliberais; e o mal como princípio não acidental do humano, tão inscrito na nossa natureza como o bem e sempre em vias de se manifestar em múltiplas e (im)previsíveis formas. José Saramago não aceitava o princípio segundo o qual somos impotentes perante um sistema mundial inumano que estimula a desigualdade, a diferença e a desumanidade. Para o autor de Ensaio sobre a Cegueira, cada um de nós pode e deve ser um fator de construção de uma nova Humanidade, em vez de acatar, ou promover, as circunstâncias (socioculturais, políticas e biológicas) que nos condicionam. A solução, sempre provisória, insuficiente e relativa, para o mal do mundo está na (re)construção de cada um de nós e das instituições; reside nos valores morais voltados para o bem comum que cada pessoa e o coletivo sejam capazes de convocar e aplicar dia a dia, a cada momento. Se, individualmente e como sociedade, perscrutarmos o passado em busca de memórias vivas para o presente e o futuro, estaremos menos propensos a viver num «universo maléfico, inimigo do homem» (Eduardo Lourenço).