Liturgy Research Papers - Academia.edu (original) (raw)

No ano de 1508, D. Manuel escrevia a Álvaro Velho, vedor das obras de São Francisco de Évora, reiterando a sua vontade de fechar a entrada da capela-mor com portas, “porque fica assy mais lugar pera se ver a Deos soomente”. Abertas... more

No ano de 1508, D. Manuel escrevia a Álvaro Velho, vedor das obras de São Francisco de Évora, reiterando a sua vontade de fechar a entrada da capela-mor com portas, “porque fica assy mais lugar pera se ver a Deos soomente”. Abertas apenas nas festas de domingos e de Santos, estas portas, limiares opacos do espaço sagrado dentro do espaço sagrado, dão conta de um encontro, significativamente enunciado como visual, entre o observador-clero e o divino. Ao observador-fiel separava-o da epifania visual da capela-mor e do coro, com o seu retábulo e cadeiral, um outro obstáculo: uma grade de marcenaria, condicente com o esplendor da talha expressamente encomendada para a igreja.
Num premeditado jogo de visibilidade e invisibilidade, o mobiliário litúrgico foi um protagonista insuspeito da reforma dos equipamentos religiosos projectada e cuidadosamente observada por D. Manuel I. Indispensável à vida das comunidades monásticas, em particular, o investimento na sua renovação respondeu tanto a reais necessidades práticas, de substituição de peças deterioradas ou obsoletas, como (senão mais) a uma nova dimensão expositiva da devoção, de que a piedade régia seria sempre exemplo maior. Obras importantes, pela sua ligação ao espaço e às actividades corais, os cadeirais de coro assumiram, contudo, para D. Manuel um claro de sentido de prioridade, de que são exemplos casos como o de Santa Cruz de Coimbra, de São Francisco de Évora, do Convento de Cristo ou de Santa Maria de Alcobaça, todos eles expressamente requeridos e acompanhados pelo monarca, por vezes com precedência relativamente à conclusão da própria estrutura arquitectónica que os receberia - gerando algum desconforto historiográfico quanto às respectivas datações. No entanto, a relação dos cadeirais de coro com a exposição visual no espaço da igreja foi muito mais opaca do que este empenho comitente pode fazer pensar. Se os próprios retábulos, feitos para serem vistos, se inscreveram com frequência em dinâmicas de exposição e ocultação garantidas por panejamentos e cortinas, as soluções procuradas para o enquadramento visual dos cadeirais de coro foram muito mais diversas, dependendo simultaneamente dos constrangimentos físicos dos espaços corais, do decoro e solenidade a ele exigidos e da ostentação dos muitos poderes que nesse mesmo espaço se cruzavam.
Partindo destes quatro estudos de caso, dos quais só o conjunto crúzio remanesce - devidamente acompanhado pelo também sobrevivente cadeiral da Sé do Funchal que, pela sua filiação catedralícia, tomaremos apenas como objecto de comparação - procuraremos tomar o pulso a este evidente jogo de forças, por vezes hesitante, entre a exposição e a ocultação, na expectativa de aclarar a relação entre os cadeirais de coro manuelinos e o espaço devocional, feito de muitas categorias espaciais, das quais a arquitectónica e a litúrgica são apenas duas das mais importantes.