Lavoura arcaica Research Papers - Academia.edu (original) (raw)
A literatura brasileira tem exemplos emblemáticos de personagens masculinos que exercem o poder através da sua voz narrativa dominante. Bentinho, no romance Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; Paulo Honório, no romance São Bernardo... more
A literatura brasileira tem exemplos emblemáticos de personagens masculinos que exercem o poder através da sua voz narrativa dominante. Bentinho, no romance Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; Paulo Honório, no romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. Em consequência, nas dobras desse discurso hegemônico viciado, "Capitus" e "Madalenas" levam a culpa por adultérios e infortúnios vários. Elas são as "sem voz", personagens que arquetipicamente simbolizam na ficção vozes reprimidas pela sociedade patriarcal brasileira, seja na ambiência urbana do Rio de Janeiro do século XIX, seja na ambiência rural das Alagoas no século XX. Uma outra obra-prima literária brasileira leva ao paroxismo a ausência de voz feminina: é o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Publicado originalmente em 1975, possui nove personagens de uma família de origem libanesa, que vivem numa fazenda em local indeterminado do interior do Brasil. Os homens são quatro: Iohana (forma hebraica de João), o pai; Pedro, o primogênito; André, o filho do meio e Lula, o caçula. As mulheres são cinco: a Mãe (sugestivamente não nomeada), Rosa (no dicionário de símbolos, representa o princípio passivo), Zuleika, Huda e Ana. Para se ter uma ideia dos papéis sociais dos personagens em Lavoura arcaica, reproduz-se um trecho significativo do romance, na voz do narrador André: Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família. (NASSAR, 2002: 156-7).
Esta dissertação se propõe a analisar o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, a partir da relação triádica casa-corpo-texto, tomando o barroco como operador de leitura. Nessa perspectiva, a adoção do barroco com um viés operacional... more
Esta dissertação se propõe a analisar o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, a partir
da relação triádica casa-corpo-texto, tomando o barroco como operador de leitura. Nessa
perspectiva, a adoção do barroco com um viés operacional não tem como intuito a
classificação historiográfica da obra, ou a afirmação de um projeto programático que se
espelhe no Neobarroco latino-americano. Antes, tendo em vista a observação da construção
formal da obra, intenta-se refletir sobre as possíveis implicações que traços barrocos podem
trazer à sua textualidade. Por esse raciocínio, o presente estudo procura demonstrar que o tripé
casa-corpo-texto, na ótica da escrita barroca, conduz a um determinado olhar sobre a relação
do homem consigo mesmo e com a sociedade. Desse modo, a dissolução das instituições
sociais cristalizadas, representadas na narrativa pela tradicional família patriarcal e por suas
relações de poder, abre-se no leque mais amplo da reflexão existencial sobre o lugar do
homem dilacerado pelas forças da cultura e de uma história fragmentária. Assim, observa-se
uma construção textual barroca que joga com diferentes discursos e ideologias, demonstrando
suas lacunas na encenação da tragicidade da existência humana.
O Brasil possui uma história marcada por violências e conflitos. Sabe-se que o país foi palco de uma colonização fundamentada no genocídio de índios, na escravização de negros, na imposição religiosa e na exploração da terra. As... more
O Brasil possui uma história marcada por violências e conflitos. Sabe-se que o país foi palco de uma colonização fundamentada no genocídio de índios, na escravização de negros, na imposição religiosa e na exploração da terra. As contradições e a opressão se estenderam para além do período colonial: imiscuem-se ao presente, permitindo-nos falar em uma violência constitutiva. Theodor Adorno afirma, na Teoria estética, que “mesmo a obra de arte mais sublime adopta uma posição determinada em relação à realidade empírica, ao mesmo tempo que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de modo inconscientemente polémico contra a sua situação a respeito do momento histórico” (ADORNO, 2012, p. 17 e 18) . O alemão defende que a historiografia está presente na obra de arte, o que pode ser lido principalmente em sua forma. Há um importante diálogo entre o social e o literário, que favorece a reflexão, a percepção e interpretação crítica do mundo e dos diferentes discursos históricos. Desse modo, estabelecendo uma relação entre a literatura e a história, propomos uma análise do patriarcalismo no romance Lavoura arcaica (1975), a partir especialmente do exame da onomástica. A força da tradição perpassa todo o livro, ao longo do qual os nomes se constroem como signo, representando papel relevante para leitura. Para tal estudo, é fundamental perceber os diálogos da obra, no que concerne aos nomes, com textos bíblicos, além de investigar tanto a etimologia hebraica quanto a árabe. Os nomes de André (narrador), Ana (irmã por quem André é apaixonado) e Iohána (pai), por exemplo, tanto individualmente quanto a partir da relação que estabelecem entre si, são fundamentais para a interpretação dos personagens. Utilizaremos como principais suportes teóricos o texto “Proust e os nomes”, de Roland Barthes, e as referidas reflexões de Theodor Adorno.
O livro Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, é composto por 30 capítulos que se organizam de forma fragmentária, trazendo informações ora do presente, ora do passado de André, narrador-protagonista. A história é marcada de forma expressiva... more
O livro Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, é composto por 30 capítulos que se organizam de forma fragmentária, trazendo informações ora do presente, ora do passado de André, narrador-protagonista. A história é marcada de forma expressiva por suas memórias relativas ao ambiente familiar. Um desses episódios está registrado no capítulo 24 da obra e corresponde à descrição da distribuição de lugares à mesa, que possui, na história, dimensão simbólica. André afirma o seguinte: “Eram esses os nossos lugares à mesa [...]: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula” (NASSAR, 2012, p. 154 e 155). É evidente em Lavoura arcaica o contraponto que o narrador representa à voz paterna: enquanto esta prega a paciência, aquele exige o imediato; se esta defende a abnegação, aquele busca a satisfação dos desejos e impulsos. No presente trabalho, nos propomos a analisar o 24° capítulo de Lavoura arcaica relacionando a posição dos membros da família à mesa com o embate ideológico e discursivo entre o protagonista e seu pai. Para isso, consideraremos a oposição presente no livro e que há muito se estabelece no contexto ocidental entre direita e esquerda, masculino e feminino. Na obra em questão, tais dualidades se encontram e adquirem amplos desdobramentos. Para efetivar tal leitura, que concilia literatura e história, adotaremos como aparato teórico os textos “O ensaio como forma”, “Posição do narrador no romance contemporâneo” e o livro Teoria estética, de Theodor W. Adorno. O filósofo alemão se dedicou ao campo literário extensamente em sua produção e nela enfatiza a importância da percepção do histórico que perpassa a obra de arte, por meio principalmente da forma. O trabalho terá como base, ainda, A dominação masculina, de Pierre Bourdieu, que fala a respeito da violência historicamente empreendida em direção ao feminino e do universo simbólico a ele associado.
O objetivo do presente artigo é apresentar uma análise da obra Lavoura arcaica de Raduan Nassar problematizando os aspectos identitários que formam a revolta essencialmente subversiva deflagrada pelo protagonista André. Ao longo da... more
O objetivo do presente artigo é apresentar uma análise da obra Lavoura arcaica de Raduan Nassar problematizando os aspectos identitários que formam a revolta essencialmente subversiva deflagrada pelo protagonista André. Ao longo da discussão, pretendemos revelar os pontos conflitantes que envolvem a luta da personagem contra os padrões de comportamento estabelecidos por um discurso patriarcal e monolítico. Nesse contexto, verificaremos como a tentativa de supressão de qualquer traço de individualidade heterodoxa tem como objetivo a preservação da aparente estabilidade do ethos familiar representado no romance. Finalmente, é nossa intenção demonstrar que tal processo de normalização, assim como a resistência de André, reflete o movimento dialético de apagamento e afirmação das individualidades nas sociedades modernas.
Resumo: Considerando a tradução como a recriação de um novo ato enunciativo que se estabelece como simulacro mais ou menos próximo do ato original, o presente trabalho traz as contribuições da Semiótica Discursiva para a análise... more
Resumo: Considerando a tradução como a recriação de um novo ato enunciativo que se estabelece como simulacro mais ou menos próximo do ato original, o presente trabalho traz as contribuições da Semiótica Discursiva para a análise comparativa da tradução para o inglês da obra Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, sob o título Ancient tillage. A teoria Semiótica como metodologia de análise possibilita não apenas a identificação de elementos textuais responsáveis pela construção do sentido subjacente ao texto, mas também o adensamento desse sentido no universo afetivo, passional e sensorial, o que encaminha o modo de apreensão da obra e o engajamento do enunciatário ao projeto enunciativo construído pelo tradutor, cujo papel é mediar os fazeres interpretativo e persuasivo na relação das obras analisadas. Colocando-se em perspectiva a noção de gradação da abordagem tensiva, analisam-se as escolhas tradutórias concernentes às coerções linguísticas, estruturas sintáticas e semânticas que foram mantidas ou recriadas, em maior ou menor grau, na obra de chegada, criando proximidades e afastamentos com a obra de partida.
RESUMO: Dentre os estudos consagrados a Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, poucos discutem aspectos ligados à tradução e, dentre eles, raros adotam uma perspectiva semiótica. Neste artigo, buscamos identificar se, e de que forma, o... more
RESUMO: Dentre os estudos consagrados a Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, poucos discutem aspectos ligados à tradução e, dentre eles, raros adotam uma perspectiva semiótica. Neste artigo, buscamos identificar se, e de que forma, o corpo e a dança podem ser considerados, no romance nassariano, como tradutor e tradução, respectivamente, de traços culturais e de sentimentos dos personagens, em especial da protagonista Ana. Para tanto refletimos sobre o conceito de tradução com base na teoria geral dos signos de Charles S. Peirce, apresentada em The collected papers of Charles Sanders Peirce (1931-1958). Também recorremos às reflexões sobre o corpo articuladas por Christine Greiner (2005), José Gil (1997) e Richard Shusterman (2008), bem como as ideias de Alain Badiou (2002) e Paul Bourcier (2001) sobre a dança. Constatamos, pelo modo através do qual o corpo da protagonista se apresenta ao mundo e pelas relações por ele desencadeadas em outros corpos, que os sentidos inscritos em nosso interior se podem transferir a outros espaços-corpos, nos quais os signos gerados encontram terreno fecundo para a semiose. Os resultados também apontam que a dança pode ser encarada como tradução sígnica tanto de uma cultura específica como de sentimentos e conflitos presentes nos personagens da narrativa.
RESUMO Devido ao espaço aberto entre a filosofia e a literatura, o presente trabalho propõe-se a dialogar acerca da temática do trágico, da embriaguez e do espírito dionisíaco formulada por Nietzsche em O nascimento da tragédia ou... more
- by CES Revista
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- Poética, Embriaguez, Trágico, Raduan Nassar
A literatura brasileira tem exemplos emblemáticos de personagens masculinos que exercem o poder através da sua voz narrativa dominante. Bentinho, no romance Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; Paulo Honório, no romance São Bernardo... more
A literatura brasileira tem exemplos emblemáticos de personagens masculinos que exercem o poder através da sua voz narrativa dominante. Bentinho, no romance Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; Paulo Honório, no romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. Em consequência, nas dobras desse discurso hegemônico viciado, "Capitus" e "Madalenas" levam a culpa por adultérios e infortúnios vários. Elas são as "sem voz", personagens que arquetipicamente simbolizam na ficção vozes reprimidas pela sociedade patriarcal brasileira, seja na ambiência urbana do Rio de Janeiro do século XIX, seja na ambiência rural das Alagoas no século XX. Uma outra obra-prima literária brasileira leva ao paroxismo a ausência de voz feminina: é o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Publicado originalmente em 1975, possui nove personagens de uma família de origem libanesa, que vivem numa fazenda em local indeterminado do interior do Brasil. Os homens são quatro: Iohana (forma hebraica de João), o pai; Pedro, o primogênito; André, o filho do meio e Lula, o caçula. As mulheres são cinco: a Mãe (sugestivamente não nomeada), Rosa (no dicionário de símbolos, representa o princípio passivo), Zuleika, Huda e Ana. Para se ter uma ideia dos papéis sociais dos personagens em Lavoura arcaica, reproduz-se um trecho significativo do romance, na voz do narrador André: Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família. (NASSAR, 2002: 156-7).